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LUGAR DE HOMEM? OS DESAFIOS QUANDO AS MULHERES CHEGAM AOS BASTIDORES DA MÚSICA



O lugar da mulher na música sempre foi delimitado de uma forma caricata. Expressões como “banda de mulheres” mostram um desconforto de um universo excessivamente masculino. Com exceção da diva, em contraponto ao crooner, todas as vezes em que as mulheres ocupam um novo espaço, este passa a ser acompanhado por uma demarcação de gênero. Por mais que ninguém fale “banda de homens”, a heteronormatividade dita a regra. Encontrar espaços ocupados por lésbicas, gays e trans é ainda mais difícil, mesmo fazendo parte do campo da arte uma certa expectativa de tolerância.

Um dos principais filtros da cultura contemporânea, os prêmios, reforçam esse contexto. Até hoje apenas três mulheres receberam um grammy por produção musical. A estimativa otimista atual é que cerca de 5% dos espaços de engenharia e técnica de som, no mundo inteiro, sejam ocupados por mulheres. Isso gera uma evidente controvérsia no mercado da música que também se reflete no Brasil: o crescimento de cantoras e mulheres como figuras centrais no centro do palco não acompanha um crescimento por trás dos palcos. Isso não significa que existam poucas mulheres trabalhando no mercado de música. A estatística sobe quando partimos para áreas de produção executiva, sendo difícil encontrar um artista – independente de gênero musical – de grande, média e pequeno porte hoje, no país, que não tenha uma mulher à frente de sua equipe de produção. O mesmo serve para os eventos. “É engraçado porque a equipe que trabalha na área ‘externa’ do festival é toda formada por mulheres e gays enquanto na parte ‘interna’ por homens”, conta Ana Garcia, à frente do festival No Ar Coquetel Molotov. Ela lembra que em 11 anos de evento nunca teve mais que duas mulheres trabalhando em iluminação de artistas ou na função de roadie. Nas primeiras edições ainda precisou passar por situações onde empresários de artistas ou patrocinadores não a encaravam como representante do evento. “Eles me viam e achavam que estava em outra função, pedindo pra falar com o ‘dono’ do festival”, lembra. Situações que a paraibana Carolina Morena, hoje com base em Salvador, enfrenta com certa frequência.

“Eles me viam e achavam que estava em outra função, pedindo pra falar com o ‘dono’ do festival” – Ana Garcia
Carolina é a produtora executiva do festival Radioca, que realiza a primeira edição em 2015, mas já dividiu também a organização do Festival Mundo, em João Pessoa, além de se apresentar como DJ. “Sempre passo por duas situações quando vou tocar em lugares novos, quando o técnico da casa não se esforça, achando que não vou notar ou quando me tratam como total leiga, que está lá só brincando de pôr um som na festinha”, conta. Ela vê um princípio de mudança nesse quadro, mas ainda um que é lento e traz uma reflexão mais histórica para essa divisão de homens na parte técnica e mulheres na parte executiva. “A presença feminina em atividades protagonistas tem sido uma conquista recente”, lembra Carolina. “Nossa sociedade ensinou e ainda ensina, de formas distintas, que os homens criam e as mulheres cuidam. Essa característica é tão intrínseca que o atual exercício é de nos policiarmos em ações diárias e na educação das crianças em relação a comportamentos que reforcem esta ideia”, diz ela, que tem em seu festival a coordenação técnica feita por uma mulher. Erica Telles, 36 anos, junto com sua equipe, supervisiona o som, luz, palco, gerador de energia, além da instalação de banheiros, relacionamento com polícia, bombeiros, prefeitura e precisa coordenar ainda as equipes de segurança e ambulância do festival Radioca. Experiência que ela acumula há quatro anos, quando começou a trabalhar na parte de infraestrutura dos shows que acontecem no Pelourinho, para a Secretaria de Cultura da Bahia. “Eu sempre acompanhava a montagem dos shows, para aprender, para não ser enrolada”, conta Erica, que é autodidata nessa parte.

“Nossa sociedade ensinou e ainda ensina, de formas distintas, que os homens criam e as mulheres cuidam.” – Carolina Morena
Tendo que coordenar não apenas equipes, mas estar em contato com outras áreas que são predominantemente masculinas, Erica conta que já sofreu preconceitos, assédios e até ameaças por ser mulher. “Um fornecedor chegou a bater em uma das mulheres da minha equipe e ficava fazendo ameaças veladas, mas acabou sendo destituído do cargo”, lembra. Hoje ela conta com uma iluminadora no Radioca, mas diz que é raro ter mulheres para compor equipes nessa área. “Acho que o desafio se faz porque as pessoas infelizmente rotulam isso como ‘coisa para homem’, o que é ridículo e limita, não estimula”, diz Erica. “Questões técnicas não têm nenhuma relação com força física, mas com qualificação e dedicação ao processo”, completa. Para ela, a ocupação desses espaços também é parte de um importante processo político. “Temos que ter o enfrentamento necessário para assumir, sim, estes ditos ‘postos masculinos’, não tolerando cara feia e assédio, nem aceitar ganhar menos apenas por ser mulher”, conta. Erica ainda reforça que essa perspectiva de que o campo da arte é mais tolerante quando diz respeito a questões de gênero, não é algo ainda bem resolvido. “Pouquíssimos são os lugares onde as pessoas têm a cabeça mais aberta, até mesmo na cena cultural”, diz a produtora. “Quebrar a casca desta sociedade majoritariamente machista é uma luta diária”, completa ela que ainda pretende fazer mais cursos, como de técnica de som, não para entrar em estúdio, mas para complementar seu trabalho em direção de palcos.

Se, por um lado, existe uma demanda para que esses espaços sejam menos masculinizados, ainda não existe uma oferta para isso. Ricardo Maia, coordenador do curso de Produção Fonográfica das Faculdades Integradas Barros Melo – Aeso, principal centro de referência quando se trata de formação na área de técnica de som, lembra que a procura pelas mulheres ainda é pequena. “As mulheres são minoria”, conta. “Quando não trabalham com produção, são cantoras. Acho que isso é uma soma de fatores, além do gênero, como localidade, fatores culturais, sociais e por aí vai”. O perfil da mulher que se forma no curso – uma média de cinco, em turmas de 50 – está voltado para uma cantora ou produtora que quer ter um diálogo equilibrado com sua equipe técnica ou buscar alguma autonomia. “Quero ser o máximo independente possível”, conta a aluna Marina Silva, que chegou a estagiar no estúdio de áudio da instituição, mas que também se matriculou em disciplinas de assessoria de imprensa em outras graduações, tudo visando o encaminhamento em seu trabalho como cantora. Ricardo Maia lembra ainda que pela produção musical ser uma área socialmente desviante, no que diz respeito ao estilo de vida tanto profissional quanto amador, isso acaba influenciando um ambiente de trabalho que é mais aberto que em outros mais formais. Por isso, segundo o coordenador do curso, esta pode até ser uma área predominantemente masculina, mas não significa que é também uma área machista. “Como as carreiras são outsiders, as equipes técnicas acabam sendo menos machistas pelo contato com estilos de vida fora do comum e contra os impositores de regras”, pondera.

“Quero ser o máximo independente possível.” – Marina Silva
A opinião de Ricardo entre em afinidade com a de Marcílio Moura que, por ser um dos principais profissionais da área técnica da música em Pernambuco é, por consequência, um dos principais contratantes e formadores de equipe para festivais e shows. “O importante é o talento”, conta ele, para reforçar que o gênero não é uma questão. “Não vejo se teria uma facilidade ou dificuldade por ser homem ou mulher, mas seria um profissional fazendo seu trabalho”. Moura percebe a discrepância entre homens e mulheres nos bastidores do palco, tal qual Carolina Morena, por uma relação histórica. “É um trabalho que na era primitiva foi exclusivo de um clube dos Bolinhas, então talvez não chame tanta atenção para o gosto feminino”, diz o técnico. “Nos dias atuais, vejo mais mulheres querendo aprender a fazer o som de um show, fazer uma gravação, editor no estúdio, mas claro que poderíamos ter bem mais”, completa.

Se existe um crescimento, ele ainda não transparece. Nos principais estúdios de gravação e ensaio de Pernambuco é raro haver mulheres assumindo o comando das workstations. Paralelamente, mesmo com o crescimento exponencial da cena independente, que tem permitido diálogos entre pequenos e grandes mercados, ainda não encontramos discos com produção musical assinada por mulheres. Uma das principais cantoras do momento atual da nova música brasileira, Tulipa Ruiz, tem não apenas uma mulher, Heloisa Aidar, gerenciando sua carreira, como uma equipe que é inteiramente feminina. “Tenho visto produtores e produtoras incríveis por aí”, conta Heloisa, no que diz respeito à parte executiva e nesse encontro entre mercado independente e grande indústria da música no país, “mas acho que esta é uma profissão que independe de gênero”, completa. “No meu escritório, pela primeira vez, temos um homem na equipe e isso foi algo que ajudou a equilibrar os ânimos”. Apesar de confessar nunca ter visto mulheres roadies – um argumento que surge em acordo entre todos os entrevistados dessa reportagem diz respeito a ser um trabalho mais braçal, que envolve uso de força – Heloisa diz encontrar com mais frequência mulheres coordenando não apenas a iluminação, como também o som de shows e festivais. No que diz respeito aos estúdios de gravação, a perspectiva da produtora de Tulipa Ruiz é otimista, “acho que é apenas uma questão de tempo para termos discos com produção assinada por mulheres”, conta.

“Na nossa cultura, você se insinuar para uma mulher em qualquer lugar, a qualquer momento, parece ser um direito do homem. Acho isto um abuso […]” – Heloisa Aidar
Heloisa, junto com Ana Garcia e Carolina Morena, entre outras entrevistadas que acabaram não listadas aqui, atentam ainda para um elemento de dificuldade para a entrada de mulheres nessa área do mercado: o assédio. “É insuportável”, desabafa a produtora, “nunca me senti no direito de ficar cantando ninguém com quem estou trabalhando. Mas, na nossa cultura, você se insinuar para uma mulher em qualquer lugar, a qualquer momento, parece ser um direito do homem. Acho isto um abuso, pois nos coloca em uma situação chata, sem poder sair fora, uma vez que estamos ali, trabalhando, tendo que passar o dia ao lado do indivíduo”, diz. O assédio não fica apenas no contratante e Carolina Morena recorda, inclusive, de episódios quando aconteceu também com jornalistas convidados para fazer cobertura do festival. “Isso exige muita postura. Como é uma coisa que sempre acontece, eu não dou brecha”, conta, contrapondo com uma das posturas que se espera de um produtor de eventos de estar sempre disponível e regulando ânimos de diversas equipes.

No geral, esta é uma luta ainda recente. Um dos primeiros registros de uma mulher trabalhando como engenheira de som é de 1974, quando Kathy Sanders entrou na turnê “Good Bye Yellow Brick Roads” de Elton John. Um esforço coletivo que se tem feito nos Estados Unidos e Europa para dar mais visibilidade a mulheres que atuam profissionalmente nesta área são em sites como o Sound Woman (www.soundwoman.co.uk) e Sound Girls (www.soundgirls.org). Ambos são parte banco de dados, com contatos e currículos, parte registro das histórias e desafios para ampliar essa estatística de um mercado dominado em 95% por homens.

Publicado originalmente na revista Outros Críticos #8 – versão da revista on-line | versão da revista impressa

Arte de capa: Shiko

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